A comunicação é ambígua. As palavras podem ter muitos sentidos inconscientes e a compreensão depende da relação do sujeito com o simbólico.

Se de um lado a comunicação não é completa e precisa, do outro, as interpretações também são inúmeras. Um jogo de quebra-cabeças complexo e em movimento, já que as peças deste jogo não parecem ser fixas e concretas.

Quem acompanha nosso trabalho já me viu utilizar o quebra-cabeça como um ‘símbolo poético’ em diversas ilustrações. É claro que a ideia surgiu do polemico símbolo do autismo.

O símbolo se tornou polêmico porque algumas pessoas tiveram a possível leitura de que ele representa peças faltantes no cérebro do autista. O que é algo ofensivo.

Eu utilizo o quebra-cabeças no intuito de que tudo é uma parte do todo. De que vamos aos poucos, peça por peça, tentando entender, tentando compreender o outro, tentando nos compreender. “Trabalho de formiguinha”, como também já ilustrei formigas carregando peças para o formigueiro. Cada uma fazendo a sua parte.

E a bolsa que a Marina carrega? A Marina fala com certa dificuldade: tanto na dicção quanto na construção precisa de seus desejos. (já deixo uma provocação aqui: Quantas vezes você já viu alguém sendo preciso ao dizer seus desejos?). Bem, a bolsa então serve para Marina carregar um caderno e uma caneta, algo que ela adotou e muitas vezes faz questão de levar. Um recurso para conseguir se fazer entender. Quando não é compreendida, ela escreve e mais uma parte se soma.

Fica aqui mais um post. Uma pequena parte. Falta a interpretação e a repetição de muitas partes.

E assim que vamos. Peça por peça. Aos poucos.

Grupo terapêutico para pais

No ano de 2023, dentre alguns dos trabalhos que realizamos como oficinas, encontros, conversas e palestras, iniciamos também uma nova proposta: um espaço terapêutico para pais de autistas.

Os encontros aconteceram de forma presencial no Instituto Raiz em Araraquara (  @institutoraiz ) e foram encontros muito ricos. Desafiadores também em vários aspectos e nos exigiram uma leitura e compreensão do sutil. Ficamos satisfeitos com o caminho trilhado, com os ganhos, com os aprendizados que surgiram com o nosso primeiro grupo. Neste ano de 2024 daremos continuidade a este espaço abrindo inscrição para novas turmas. Pretendemos também ter encontros on line abordando alguns temas.

Comunicação: a importância do que não é dito

Minha irmã mais nova possui paralisia cerebral, o que afeta sua coordenação motora e a fala, mas seu cognitivo é intacto. Ela é apenas dois anos mais nova que eu e pude acompanhar durante minha vida toda as diferentes fases de suas dificuldades e as dificuldades que as outras pessoas tinham em se comunicar com ela. E também acompanhei como minha mãe e ela tentavam solucionar esta equação buscando métodos e opiniões profissionais.
    Pela sua dificuldade na fala, muitas pessoas achavam que ela também não compreendia e não tinha consciência das coisas, dificilmente perguntavam algo para ela. Ao invés disso, perguntavam à minha mãe, mesmo quando estava ao lado dela, ou simplesmente tratavam a situação com uma certa infantilidade duvidando que poderia compreender.
    Parte disto que minha mãe e minha irmã passam eu também vejo nos relacionamentos com a Marina. Ela possui dificuldade em se comunicar e muitos também acreditam que ela tenha dificuldades na compreensão. Esta dúvida em relação ao outro por si só já causa ruído em qualquer comunicação. Em nosso dia a dia, no trabalho ou nas relações pessoais, a comunicação que observamos dificilmente possui uma clareza.
Afinal, qual de nós consegue uma comunicação clara? 
Acredito que esta falta de clareza e confusões que acontecem na comunicação se devem à falta de interpretação. Este questionamento sempre me ocorre:

“Tudo é interpretação”.

Não apenas na interpretação que estamos tendo enquanto o outro fala. Esta interpretação começa em nosso íntimo.

Sabemos nos interpretar? Sabemos reconhecer nossa própria história? Conseguimos distinguir entre o que queremos realmente dizer e o que estamos dizendo inconscientemente?

    O autoconhecimento nos ajuda a entender os outros e se autoconhecer é um trabalho muito difícil. Nossos sentidos estão apontados para perceber o que ocorre à nossa volta e poucas vezes voltamos o olhar para nós mesmos. 

    Não nos comunicamos apenas com as palavras. Existe um gesto, um olhar, um ambiente, um tom de voz, um jogo de quadril e outras vibrações quase imperceptíveis que fazem parte deste diálogo. Sendo assim, não compreendemos o outro apenas ouvindo ou apenas olhando.

    Essa distância física entre quem se comunica possui grande importância. Não é à toa que uma conversa por whatsapp muitas vezes não funciona. (Mas é claro que existem momentos em que este recurso facilita muito).
    Um toque de pele pode falar muita coisa… temos que saber como tocar o outro. Um tom de voz errado pode atingir uma outra pessoa de maneira totalmente inversa da que gostaríamos.
    Então, quando vamos falar algo, temos que prestar muita atenção ao que queremos dizer e as outras vozes internas que gostariam de sair de nosso íntimo e que não fazem parte deste contexto.
    E como fazemos isso? Conhecendo-nos cada vez mais. Ouvindo-nos mais. Percebendo-nos mais… E assim, podemos compreender melhor o outro, mesmo no caso em que o outro não saiba falar muito bem. 
Quão autistas somos nós? Este é um outro questionamento que tenho constantemente. Estou me conhecendo melhor e,consequentemente, conhecendo e me comunicando melhor com minha filha, conhecendo e me comunicando melhorcom outras pessoas.
    Gael, meu filho mais novo, tem apenas 2 anos e já se comunica muito bem com a Marina mesmo tendo um vocabulário e um raciocínio ainda muito imaturo. Acredito até que ele se comunica com ela, muitas vezes, melhor do que eu.     Hoje fico feliz quando vou contar histórias para a Marina dormir e posso ficar fazendo carinho em suas costas. Até pouco tempo atrás, este toque, este carinho, era sentido como algo incômodo por ela, mesmo que no fundo gostasse, se esquivava. Este foi um dos ganhos com a vinda do Gael. Este foi um dos ganhos ao conhecer-nos melhor e percebermos a intenção do toque e como fazê-lo.

    Muitas vezes nos comunicamos também no silêncio.

    Este é um assunto complexo, o qual demandaria uma boa análise e conhecimento para aborda-lo, mas minha intenção foi apenas de estimular uma reflexão. É um convite para olhar menos para fora e mais para dentro.
A imagem acima ilustra um momento comum durante o almoço. Mesmo em silêncio, muitas vezes ela fica escrevendo com o dedo em meu braço ou na mesa.

Adaptar não é facilitar. É tornar possível!

A adaptação acontece quando aumentamos as possibilidades para que algo seja alcançado, porém, nem sempre essecaminho é mais fácil, como se parece.Um exemplo desse processo de adaptação que aconteceu com a gente, dentre muitos, foi a construção de umabrincadeira para aumentar as possiblidades e a curiosidade da Marina durante o período de alfabetização.
Ela se interessava muito pelas letras e sempre observávamos seu olhar aguçado, uma certa “visão de águia” quelocalizava tudo com muita rapidez e memorizava imagens com muita facilidade. Um exemplo concreto disso é quando jogávamos Lince, um jogo de tabuleiro que leva o ponto quem acha a figura primeiro. Não tinha pra ninguém, elasempre achava de forma muito rápida!
Nas leituras de histórias e outras interações com palavras escritas também não era diferente, notávamos que ela memorizava palavras, porém como sendo uma figura, uma foto. Ela observava o “visual” da palavra, mesmo sem ainda compreender como eram formadas, o que significavam as sílabas e os sons produzidos pelas consoantes e vogais separadamente.
Ao observarmos isso, começamos a imprimir várias palavras do cotidiano dela para brincarmos e ainda tornarmos possível outras habilidades. Era uma brincadeira de forma espontânea que estimulou muito o raciocínio, aumentou o vocabulário e a interpretação, além da alfabetização.
Colocávamos as palavras em cima da mesa e íamos fazendo perguntas com o intuito de ver se ela iria encontrar a palavra em questão em meio às outras. Como uma charada. Por exemplo:
Se a ideia era ela procurar a palavra “colher”, dizíamos:
“Um tipo de talher” ou “algo que usamos na refeição” ou ainda “usamos quando vamos tomar sopa”.
Para palavra “felicidade”:
“Um tipo de sentimento” ou “O que você sente quando realiza algo que gosta muito?”
Foi sua brincadeira preferida durante muito tempo. Levava uma caixinha com essas palavras para todo lugar que ia. O legal é que quando estávamos com outras pessoas, cada um tinha uma maneira, uma forma, uma expressão diferente de se referir a determinada palavra e isso fazia com que ela aumentasse seu repertório, percepção e raciocínio.
Essa brincadeira também fazia com que ela conseguisse mostrar sua habilidade de compreensão e rapidez, o que a deixava muito feliz e com a auto estima alta.
Constantemente tínhamos que imprimir novas palavras a medida que as atuais iam saturando (e muitas vezes rasgando pelo uso constante). A forma de brincar também ia sendo reinventada. Às vezes fazíamos perguntas para que ela pegasse mais de uma palavra e tinha que perceber que esse era o intuito.
As palavras variavam entre verbos, nomes de cidades ou lugares, adjetivos, substantivos, nomes pessoais ou nomes de desenhos e filmes que ela acompanhava. Um repertório bem longo e que depois de um tempo também se estendeu para temas que complementavam o que foi aprendido na escola, até mesmo com palavras em inglês brincávamos (outro ganho dentro desta brincadeira)….
Foi uma forma de comunicação que encontramos para introduzir vários assuntos e aumentar sua curiosidade pela leitura, que não tardou a acontecer (da forma convencional).
Hoje ela lê e escreve. Uma leitora ávida (dos livros dela e também dos nossos). Quando não entendemos o que ela diz, muitas vezes pedimos para ela escrever e isso nos enche de orgulho. E percebemos esse orgulho nela também!